segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O menino que soltava fogos


No best-seller “O Caçador de Pipas”, o pequeno Amir, menino rico, vive, ao lado do amigo pobre Hassan (que na verdade é seu irmão), as desventuras de um Afeganistão que de país próspero e rico se transforma num lugar miserável, conseqüência de uma guerra tribal que primeiro jogou a nação nas mãos de déspotas comunistas e depois nos braços de talibãs ultra-radicais e lunáticos dos pés ao turbante.

Amir e Hassan têm como principal atividade de lazer soltar pipas e depois caçá-las quando são abatidas em competições que mobilizam a comunidade e dão a seu vencedor status de craque do futebol.

Com a guerra, o Afeganistão e as pipas são abatidos pelo terror. Hassan é assassinado e Amir imigra para os Estados Unidos.

Nunca vai encontrar a paz interior, porque o Afeganistão da infância perdida e a perda de Hassan corroem-lhe a alma, como uma chama que não se apaga.

No romance da vida real, a Favela do Bode, lugarejo de nome quase obsceno na abandonada periferia de Itabuna, onde a riqueza, o conforto e o acesso aos serviços públicos são quase uma abstração, meninos não soltam pipas, inocente brincadeira planetária, nem jogam futebol.

Ali, trava-se outro tipo de guerra, sem as contradições do comunismo que vira repressão e sem o fundamentalismo amalucado.

Trava-se, isso sim, a guerra em que a força motriz é o tráfico e em que os traficantes, na quase total ausência do poder público, impõe a lei e a ordem, o que na prática implica impor o terror e o medo.

Uma guerra onde um Amir, que por aqui pode se chamar José, João, Pedro ou Paulo, é arrancado das pipas ou do futebol num campinho improvisado, para ser engajado, meio à força, meio por falta de opções, como soldadinho do tráfico.

É o caso de um menor, abordado no último domingo por policiais militares que passavam pelas proximidades da Favela do Bode, que tem o pomposo e ignorado nome de Jardim Grapiuna.

Era um menino de 10 anos de idade, que soltava fogos como se comemorasse o gol de seu time de coração ou homenageasse tardiamente os santos juninos.

Nada disso: o que o garoto fazia, numa prática comum, era alertar os traficantes para a presença dos policiais na área, provocando temporariamente a suspensão do funcionamento do lucrativo negócio.

Função subalterna, primeiro degrau na escada no tráfico, onde chegar vivo aos 20 anos de idade é quase um milagre.

Crianças e jovens descartáveis, vítimas potenciais dessa guerra urbana, disponíveis em abundância no oceano de exclusão social em que estamos mergulhados.

10 anos de idade.

Uma criança.

Nem caçador de pipas, nem jogador de futebol, provavelmente nem estudante.

Soltador de fogos a serviço do tráfico.

O futuro?

Uma cela fétida e superlotada na cadeia ou uma cova rasa e mulambenta nas bordas de um cemitério qualquer.

E o que nós temos a ver com isso?

Tudo.

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