segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um Lula, vários Lulas (*)

Num dia qualquer do ano de 1952 um menino chamado Luiz Inácio da Silva saiu do sertão de Pernambuco em companhia da mãe e dos irmãos. Subiu num pau de arara para tentar a vida no Eldorado Paulista. Na `sunpólo´ de milhões de nordestinos.
Luiz Inácio estudou a duras penas, fez um curso no Senai, virou líder metalúrgico, fundou um partido de trabalhadores e...
Bem, essa é a história do Lula que todo mundo já sabe.
O que vai se contar aqui é a história do Luiz Inácio da Silva, também apelidado de Lula, filho de dona Maria de Jesus e de seu Dionísio Inácio da Silva. Nascido em 30 de março de 1964. Bem no dia em que eclodiu o golpe militar. Aquele que mergulhou o país nas trevas, matou, prendeu, censurou.
E que, por linhas tortas, deu origem ao gene do Lula famoso, que se notabilzou por combater a ditadura e abrir caminho para a volta da democracia.
O Lula de dona Maria e seu Dionísio nasceu em Ipirá, no sertão baiano. Só estudou até o segundo ano primário. Desde cedo, começou a trabalhar na roça, a conviver com o drama da seca, embora por ironia more num povoado chamado Caixa Dágua. “Moço, sabe o que é ficar um ano sem ver chuva?. A gente planta o milho, o feijão. Aí vinha a seca e acabava com tudo”.
Luiz Inácio da Silva casou-se com Miranice, também da Silva, e teve quatro filhos, Jailton 14 anos, Juliana 12, Rodrigo 11 e Diego 6. “A gente vê os meninos crescerem na maior dificuldade, mas nunca perde a esperança de que eles vão ter um futuro melhor”.


Um futuro que parecia não vir nunca na Ipirá onde o Lula baiano nasceu e cresceu. “Esse ano a seca foi demais moço. Arrasou tudo. Eu tirava 15 reais por semana capinando roça, mas nem isso tava conseguindo. A fome batendo, a gente olha pra mulher e os filhos e dá um aperto no coração”.
Caminhando em busca de trabalho, o sol a pino ardendo na cabeça, Luiz Inácio da Silva decidiu vir para Itabuna. Sem ter a mais vaga idéia de como era a cidade, sem conhecer ninguém. “Ouvia falar do cacau, que aqui era um lugar muito rico, com dinheiro para todo mundo”.
Lula juntou o dinheirinho da viagem de ônibus. Antes reservou R$ 9,00 (nove reais!) e fez uma feirazinha para mulher e os filhos. “Lembro bem. Um quilo de açucar, um quilo de feijão, dois litros de farinha, um pacote de café, um pedacinho de jabá”.
Após nove horas de viagem, desembarcou em Itabuna. Com uma esperança do tamanho do mundo e exatos R$ 2,50 no bolso. “Achava que era chegar aqui e arrumar emprego, alugar uma casinha e trazer a mulher e os filhos pra morar comigo”.
Não se sabe o que acabou primeiro, o dinheiro ou a esperança. Na Itabuna real, não havia emprego nem dinheiro nascendo em árvores. Luiz Inácio descobriu isso desde que deixou a rodoviária, percorreu a pé a avenida Inácio Tosta Filho e chegou à praça José Bastos. “Que cidade grande, muito verde, muita água. A gente até se assusta. Mas logo percebi que não conseguiria nada aqui”.
Foram nove dias sobrevivendo com a ajuda de pessoas que se emocionavam com seu infortúnio. Nove noites dormindo nos bancos na Estação Rodoviária. “Dormindo sentado, moço, que não deixam a gente se deitar”.
Na quinta-feira, 30 de outubro, naquele que seria seu derradeiro dia no inexistente Eldorado Grapiuna, Lula almoçou de verdade pela primeira vez. Depois, enrolou um pedaço de frango assado num papel alumínio e colocou no bolso.
A frase que segue aqui soaria num exagero, não fosse dita com a sinceridade típica do sertanejo. “Moço, isso é pra dividir com a mulher e os meninos”.

(Atenção Presidente Lula: o parágrafo acima não é uma invenção de jornalista para dramatizar o texto. É um cruel retrato de milhões de brasileiros, xarás seus ou não).

Por volta da meia noite do mesmo dia 30, com passagem fornecida pela prefeitura e uma pequena quantia em dinheiro obtida através de doações , Luiz Inácio embarcou de volta para seu povoado de Caixa Dágua, na distante Ipirá. “Lá eu passo necessidade, mas estou perto da família. Aqui eu iria virar um mendigo”.
Sobre o seu xará famoso, Luiz Inácio é só admiração, numa quase veneração ao retirante que foi mais longe, infinitamente mais longe, do que ele:
-Sempre votei no Lula. Ele perdia, mas eu acreditava que um dia ele iria ganhar para melhorar a vida da gente. E ele vai fazer isso, ajudar os pobres. Tem o Fome Zero, que eu ainda não recebo, mas com fé em Deus vou receber, pra colocar comida em casa.
Na improvável hipótese de encontrar o presidente, garante que não pediria nada:
-Pedir o que, moço! Eu ia era dar um abraço bem forte nele e dizer que dou valor pra gente teimosa, que não desanima. Que eu tenho orgulho de ser nordestino como ele.
O ônibus da Aguia Branca arranca na noite sem estrelas, rasgando a BR 101, deixando a imensidão de verde e de água e encarando a poeira do sertão seco e miserável.
Na poltrona 26, agarrado aos poucos pertences e ao seu pedacinho de frango frito, Luiz Inácio Silva, cidadão de Ipirá, dorme.
Talvez sonhe com um outro Luiz Inácio da Silva, cidadão do mundo. Aquele que pode lhe garantir um cartão do Fome Zero.
Ou, o que é mais provável, sonhe acordado com a hora em que irá abraçar a mulher e os filhos.
Na imensidão do nada em que o sol transforma seu povoado e sua vida, Lula vai se lembrar de Itabuna como uma espécie de Terra Prometida às avessas. Ou de uma promessa apenas adiada. “Um dia talvez eu volte e volte pra ficar. Pode escrever aí, moço, que eu não sou homem de me entregar fácil”.


(Atenção, de novo, presidente Lula. Esse Luiz Inácio aí poderia ser você. Ou melhor, pela ordem natural das coisas, você poderia ser esse Luiz Inácio. Quis o destino que você fosse o escolhido. Para mudar o destino de Luiz Inácio, sua mulher, seus quatro filhos e dessa gente que apesar de tudo não perde a capacidade de sorrir.)
O sorriso do nosso Lula do povoado de Caixa Dágua certamente é a mais perfeita tradução da palavra esperança.

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Texto publicado no Diario do Sul- novembro/2004

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