segunda-feira, 26 de abril de 2010

500+10: o dia em que o Brasil enfrentou o Brazil


Na foto de Lula Marques, o índio Terena no chão, cercado de policiais: truculência que atravessa os séculos

Estava tudo devidamente acertado. Naquele 22 de abril do ano 2000, em Porto Seguro, e elite empresarial e política do Brasil faria a festa vip dos 500 anos do “descobrimento”, com direito a coquetéis em hotel de luxo, passeio pelo centro histórico e uma apresentação musical numa caravela à beira-mar.

À patuléia, índios, estudantes, trabalhadores, sem-terras, estava reservada a figuração no cenário montado para celebrar o Brasil Primeiro. Mundo, existente apenas na presunção do então presidente Fernando Cardoso. Segregado por um espantoso aparato de segurança, o povo ficaria no lugar onde sempre esteve, a senzala, enquanto as autoridades e os convidados se refestelariam na casa grande.

Se estava acertado, faltou combinar com o povo.

Que naquele dia especialmente, decidiu não concordar com o papel que lhe fora reservado. O bloqueio do acesso a Porto Seguro via Eunápolis, que tinha o objetivo de barrar os sem-terras, mas barrou mesmo foram moradores locais e turistas; somado à proibição de uma marcha entre Coroa Vermelha e Porto Seguro serviu como estopim de um barril de pólvora prestes a explodir. As palavras do pataxó Luiz Tiliá funcionaram como o fogo que acende o estopim e explode o barril.

-Amanhã nós vamos fazer uma caminhada até Porto Seguro e a polícia não vai deixar. Quero que cada tribo junte os dez guerreiros mais fortes. Eles vão na frente, porque nós vai passar de qualquer jeito.

Não passariam. Um vidente previu chuvas e trovoadas em Porto Seguro no dia 22 de abril do ano de 2000. Acertou na previsão do tempo e na metáfora.

A documentarista inglesa Vik Birkbeck, radicada há trinta anos no Brasil, estava em Porto Seguro e produziu imagens que serão utilizadas no documentário “500+10”, em fase de pré-produção. “A imagem que ficou, que rodou o mundo, e foi estampada na capa dos jornais nacionais e internacionais como a imagem definitiva, símbolica dos 500 anos do dito descobrimento do Brasil foi a foto de Lula Marques do índio Gilson Terena sendo pisoteado pelo avanço da tropa de choque, na chuva, em meio de uma nuvem de gas lacrimogênio: o corpo quase nu, torso magro, calção preto, estendido no asfalto molhado, debaixo dos pés dos jovens sarados, armados para combate, de bota, escudo, capacete avançando no melhor estilo Robocop”, relata Vik.

Para ela, “ todos os elementos do desfecho estavam já presentes. Havia indícios prévios da truculência official”. Faziam três anos que o índio pataxó Galdino, de Pau Brasil, havia sido queimado vivo em Brasília por rapazes de famílias de classe media, que como explicação para o assassinato alegaram tratar-se de uma brincadeira. No dia 17 de março o Governo Federal instalou uma imensa cruz de aço na aldeia dos Pataxós hã hã hãe em Coroa Vermelha. “Ao tentar erguer o seu próprio monumento aos 500 anos de resistência indígena, os Pataxós viram suas terra invadidos por 200 policiais militares que derrubarem o monumento em construção com um trator”, lembra a cineasta.

CÃES RAIVOSOS

Vik cita ainda que “para chegarem a Coroa Vermelha, muitos dos povos indígenas tinham feita viagens de até duas semanas, saindo das florestas e lugares distantes, pelas trilhas do mato ou de canoa para ainda enfrentarem dias de viagem em velhos ônibus frêtados. A maioria jamais tinha enfrentado uma viagem desses e nem conhecia outras regiões do país”.


Na casa grande, ACM e FHC sorriem. Simbolicamente, de costas para o povo (foto Arquivo Sedoc/Uesc)

Durante o encontro de Coroa Vermelha, diante da falha de negociações com a comitiva presidencial, os indígenas, apoiados pelo Movimento Negro, MST e estudantes, decidiram realizar, no dia 22 de abril, uma grande marcha até Porto Seguro. No grupo, centenas de mulheres e crianças, a maioria pintada e com roupas tradicionais de suas tribos. Chovia torrencialmente naquele dia, como que num prenúncio das trovoadas que viriam em forma de truculência explícita. A tropa de choque da PM Baiana, orientada a impedir a chegada do grupo a qualquer custo, usou todo o seu arsenal, incluindo cães ferozes, para barrar os que se atreviam a deixam a senzala rumo à casa grande.

NAU DOS INSENSATOS


A caravela e o teatro do absurdo. Em vez de aplausos, pedras. (foto Arquivo Sedoc/Uesc)

Em Porto Seguro, brasileiros mobilizados pela Rede Globo, que praticamente monopolizou a data histórica, foram a reduzidos a meros fugurantes. Comerciantes de Porto Seguro que haviam se preparado durante meses para o evento ficaram revoltados ao ver suas lojas completamente tapadas pela imenso tapume colocado para proteger os VIPs convidados para um espetáculo numa nau ancorada na Passarela do Alcool. Resultado: populares atacaram o navio e seus convidados mais ou menos ilustres com pedras, coroando um dos dias mais deprimentes da história brasileira.

Fernando Henrique Cardoso, que deveria passer dois dias na cidade, ficou apenas três horas, limitando sua visita ao regabofe no Hotel Vela Branca, onde enfrentou um protesto de jornalistas que se sentiam cerceados no direito de trabalhar e errou duas vezes ao tentar cantar o Hino Nacional; e a uma visita ao Centro Histórico, totalmente cercado pela polícia e com sorridentes baianas de fancaria a lhe fazer corte.

Vik Birkbeck, acredita que “se deixassem os indios chegarem a Porto Seguro teria havido uma verdadeira festa, porque as tribos não estavam buscando confusão, mas sim fazendo um contraponto dos 500 anos, que para eles não eram de descobrimento, mas de ocupação. O protesto nem sempre se faz com briga mas tambem com a danca, os rituais, a beleza, sobretudo com a presença dos corpos vivos das mulheres, homens e crianças”. “Essa festa, os elites sempre negaram. Vieram o movimento negro, os sem terra, enfim todos que se sentiram alijados do processo nacional. Para eles se tratava de um momento de reflexão e questionamento de 500 anos de massacre e exploração”, afirma ela. “ Que imagem esses indios que sairam das suas florestas pela primeira vez devem ter do país, se tentar dialogar levam porrada?”, questiona..

Dez anos depois daquela pancadaria teve repercussão mundial e fez com que o Brasil real rompesse das entranhas do Brasil official, existe um monumental caminho a ser percorrido, já que, apesar dos avanços sociais verificados nos últimos anos, ainda há muito a ser feito para que não haja uma distância tão abissal entre os poucos que desfrutam os prazeres da casa grande Brasil com as mãos no primeiro mundo e as agruras dos milhões que tem os pés no Brasil sensala de padrões africanos.

Se existe alguma lição daqueles dias de abril de 2000, é a de que exclusão social não se combate com porrada. A outra lição é que o Brasil ainda tem uma imensa dívida social com os povos que construiram e constróem esse país no anonimato de suas vidas simples e não raro cheias de dificuldades.

Mas isso são outros 500. Ou não?

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