quinta-feira, 18 de setembro de 2008

FRUTO DE OURO, BREGA DE OURO


O dia em que as histórias de Olívia
e de Sonia viraram uma só história


Se acaso me quiseres/sou dessas mulheres que só dizem sim...
E se tiveres renda/aceito uma prenda/qualquer coisa assim/
Como uma pedra falsa/um sonho de valsa/ou um corte de cetim... (1)


A história de Olívia é clássica. Filha de trabalhadores rurais, morando numa rua de casas paupérrimas em Itapé, engravidou do namorado, que não quis saber de assumir a criança.
O pai, depois de uma surra homérica na “filha vagabunda”, colocou-a para fora de casa.Olívia foi parar na casa da avó em Ibicaraí, teve o filho que também não queria e, seguindo o curso natural da história, virou empregada doméstica, ou “secretária”, esse eufemismo para um trabalho que resistiu ao fim da escravidão.
Ganhava mal, era humilhada pela patroa e ainda tinha que ceder aos desejos sexuais do dono da casa.
É nesse ponto que a história de Olívia vai se cruzar com uma história glamourosa, recheada de lendas e fatos que, embora hoje pareçam fruto de uma alucinação coletiva, foram absoluta e absurdamente verdadeiros.

E eu te farei vaidoso supor/que é o maior/e que me possuis/
Mas na manhã seguinte/não conte até vinte/te afasta de mim/
Pois já não vales nada/és página virada no meu folhetim.(1)


Quando Olívia se cansou da dobradinha ´fodida e mal paga´, uma amiga lhe falou da casa de Sonia.Pronto.Olívia e Sonia agora fazem parte da mesma história, embora a história de Sonia tenha, além de Olívia, patrícias, meires, solanges, thábatas, elianas e tantos outros nomes verdadeiros ou de guerra.


KASARÃO RELAX DRINK´S

Kasarão o que? Ah, o Brega de Sonia. Quem nunca, ao menos uma vez, não ouviu falar de Sonia? A casa espaçosa em estilo colonial no bairro de Fátima, na periferia de Itabuna, é quase um referencial na cidade.Povoa a imaginação das pessoas.
Sonia teve seus 15 minutos de fama ao ser incluída num Globo Repórter sobre a crise na lavoura cacaueira.Na época, a novela Renascer, ambientada no Sul da Bahia, fazia estrondoso sucesso e a repórter Ilze Scamparini produziu um programa onde a crise, uma coisa séria, que afeta milhares de pessoas, mais parecia um romance de Jorge Amado.
Em vez de lideranças da lavoura, sindicalistas e trabalhadores rurais, Ilze mostrou coronéis de mentirinha como Sá Barreto e uma personagem real mas que poderia perfeitamente fazer parte de um script de novela, Sonia, autora de uma frase antológica que reverberou nos lares de milhões de brasileiros: “a crise do cacau está tirando o tesão dos homens”.

Mergulhado na solidão/um vazio no coração/e o meu corpo pedindo um pouco de carinho/de repente então me lembrei/
De um anuncio e telefonei/Marquei um encontro amoroso/pra não ficar sozinho/Eu agora estou apaixonado por essa garota de programa (2)


Esqueçamos por um instante a crise, a falta de tesão dos homens grapiunas e Sonia. Voltemos a Olívia.
18 anos, o corpinho bem feito, seios durinhos, bundinha bem torneada. Chegou a caiu nas graças da clientela. No início, vergonha. Depois...Bem, depois veio o dinheiro farto, os clientes generosos. “Num mês bom cheguei a tirar o que hoje seriam três mil reais. Era muito dinheiro”.
Era muito dinheiro mas não era tudo.Dois anos depois, Olívia resolveu tentar a vida em São Paulo. Bem que tentou. Abandonou a prostituição e foi trabalhar como doméstica em São Miguel Paulista, um bairro miserável e violento no cinturão de pobreza da periferia da maior cidade do país.
Outra vez o dinheiro curto, a exploração. Os namorados que só queriam saber de trepar com aquela baianinha fogosa. E já que era para trepar, o caminho foi óbvio: a Boca do Lixo, zona de prostituição de baixíssima categoria do centro velho de São Paulo.

Eu agora estou apaixonado/por essa garota de programa/e não interessa o que ela fez no seu passado/o meu coração me pede, eu digo/tire essa saudade do meu peito/traga seu amor e vem ficar aqui comigo (2)

Deixemos Olívia transando com os pobres coitados de São Paulo e voltemos ao Kasarão Relax Drink´s. Ou melhor, voltemos ao Brega de Sonia.
Há pouco mais de vinte anos, quando Sonia decidiu se dedicar a essa modalidade nada ortodoxa de prestação de serviços, a Região Cacaueira vivia o extertor de um ciclo de ouro onde todas as loucuras possíveis e imagináveis, em todos os sentidos, foram cometidas.
Sonia pegou a última alta do cacau, aquele aviso do anjo, como se Deus dissesse “vocês não souberam aplicar bem o dinheiro que o cacau produziu, mas EU estou dando mais uma chance.Não a desperdicem”.
Mas, cá entre nós, quem é que vai estar preocupado com essas coisas de anjos e mensagens divinas com o cacau batendo nos três mil dólares a tonelada?

Olha, a primeira vez que eu estive aqui/foi só pra me distrair, eu vim em busca de amor/Olha, foi então que eu te conheci, naquela noite fria, em seus braços meus problemas esqueci... (3)

Fala Sônia:
-Era farra em cima de farra.Os fazendeiros chegavam aqui e exigiam as melhores meninas, o melhor uísque...
Os melhores, as melhores. A casa chegou a abrigar 30 garotas. Trinta misses, trinta top models. Meninas na casa dos 18, 20 anos. Vindas do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná, de Salvador. “Até do Exterior”, diz Sonia, não sem uma ponta de melancolia.
Era festa dia e noite, porque quando se tem dinheiro esse negócio de tempo perde o sentido.
Meninas lindas que se entregavam por dinheiro aos fazendeiros e empresários (chamados – Deus, como isso hoje soa ridículo!- de coronéis e barões) e também se entregavam por paixão ao primeiro que lhes oferecesse um mínimo de afeto. Afinal vivemos num país onde traficante cheira, puta de apaixona e sociólogos tidos como respeitáveis esquecem tudo o que disseram/escreveram depois que chegam ao poder.

Olha, a segunda vez que eu estive aqui/já não foi pra me distrair/eu senti saudade de você/olha eu precisava de carinho/eu já me sentia tão sozinho/e já não podia mais te esquecer... (3)

Justiça seja feita. Sonia pode não ser o modelo pronto e acabado de beata e muito provavelmente terá uma certa dificuldade em conseguir uma vaga no reino dos céus, mas entendeu perfeitamente a mensagem do anjo.
Empresários e fazendeiros, como qualquer cego pode ver, não entenderam.
Sonia construiu um patrimônio sólido, que hoje inclui duas pousadas no litoral sul-baiano e algumas casas de aluguel. “Graças a Deus soube aplicar bem o dinheiro, não fiz bobagens”, diz. E completa: “fiz questão de orientar bem minhas meninas, mostrando que tudo aqui era passageiro, que não esbanjassem. Muitas delas estão casadas, bem de vida”. Cite uma. “Imagina, isso a gente não fala”.
“Minhas meninas” poderiam ser substituídas por “minhas filhas”, porque Sonia se sente um pouco mãe de todas elas. “É uma vida dura, ninguém se prostitui porque quer, mas faço que elas encarem isso como uma profissão, não se envergonhem disso”.
Que mantenham a dignidade. Que não percam a sensibilidade. Que não matem a capacidade de sonhar.

Eu vou tirar você desse lugar/ eu vou levar você pra ficar comigo/e não me importa o que os outros vão pensar... (3)

Depois da ultima alta do cacau.Ou do aviso do anjo enviado por Deus. Pecadores continuaram em pecado. E o Senhor resolveu que depois de tanto dinheiro fácil, o castigo teria que vir não à cavalo, mas numa vassoura. E em forma de bruxa.
A vassoura-de-bruxa, e de novo até os cegos podem ver, surgiu e se alastrou como uma praga devastadora.Em menos de uma década transformou o Eldorado Grapiuna em terra arrasada.
Fez valer a verdade da geografia e colocou o Sul da Bahia (tão Sul do País nos modismos e no padrão de vida de suas classes média e alta) no Nordeste.
Estamos reaproximando Olívia de Sonia.Recolocando-as na mesma história. A crise levou embora as meninas de São Paulo, Rio e Curitiba. E, se é que um dia existiram (as vezes os nem os próprios protagonistas dessa História sabem o que é história e o que é estória), as meninas do Exterior tomaram um avião, um navio ou partiram em cavalos alados.

Eu sei que você tem medo de não dar certo/pensa que o passado vai estar sempre perto/e que um dia eu possa me arrepender/eu quero que você não pense em nada triste/pois quando o amor existe/não existe tempo pra sofrer. (3)

Hoje, o Kasarão Relax Drink´s (em tempos de decadência explícita faremos concessão ao nome pomposo) abriga cinco, seis meninas.De Conquista, de Jequié, de Itajuipe. Da periferia de Itabuna.
Coronéis, fazendeiros? Estudantes em busca de farra, empregados do comércio, de vez em quando um garoto disposto a pagar 20 reais pelo quarto e 50 pela transa. 50? Tudo depende da pechincha, coisa impensável nos anos dourados.
“A maioria das pessoas vem aqui só pra ficar alisando a gente.Pedem uma cerveja e ficam enrolando. Chego a ficar dois, três dias sem um único cliente”, confidencia uma das meninas. “Acabou, acabou. Nem o cacau volta a ser o que era nem a gente vai ter o movimento que tinha”, sentencia Sonia. “Com essas menininhas aí trepando a torto e direito, quem é que vai pagar pra trepar?”, pergunta, a língua ferina de sempre.
Olívia sorri, uma espécie de líder, fazendo as vezes de recepcionista.
Mas, Olívia não deveria estar em São Paulo?
“Uma vida dura, violenta. Dá até pra ganhar um dinheirinho, mas não vale a pena”.
Filha pródiga, assim que decidiu fazer o caminho de volta, Olívia não pensou na casa dos pais em Itapé. Nem na casa da avó em Ibicaraí.
Pensou na casa de Sonia, onde está há um ano. Os tempos são outros, os clientes estão cada vez mais escassos.”Mas dá pra tirar uns 500 reais livres por mês”. Olívia é ótima de conta. Abate a refeição, abate a moradia, abate a roupa lavada.
500 reais livres por mês. O dobro de uma professora primária, pouco menos que um professor universitário, salário médio de um jornalista. Quatro vezes mais do que uma doméstica.
“Claro que eu sonho em sair daqui, encontrar um cara legal, casar. Mas não fico pensando nisso. Se acontecer, aconteceu”.

Eu vou tirar você desse lugar/eu vou levar você pra ficar comigo/e não interessa o que os outros vão pensar... (3)

Olívia tem um sorriso franco, cativante. Não fosse o namorado canalha.Não fosse o pai insensível. Não fosse a patroa exploradora. Não fosse o cacau que em tempos áureos ou na decadência sempre excluiu a maioria das pessoas.
Talvez fosse esposa de um trabalhador rural, de um comerciário batalhador. Com um pouco de sorte, do dono de uma rocinha com centenas de arrobas de cacau.
Não há tempo para divagações.Chegam três rapazes e Olívia pede licença para atende-los, não sem antes comentar baixinho “esses aí tem cara de que só vem aqui enrolar”. Ossos do ofício, Olívia escolhe seu melhor sorriso e se esmera-se em mesuras aos rapazes.
No quarto, Sonia, essa respeitável senhora, mãe de cinco filhos, empresária hoteleira, esparrama-se pela cama e assiste a um filme na Globo.
Lá fora, a vida passa como um filme onde Olívia, Sonia e cada
um segue o curso natural da história.
Entrelaçando histórias, vidas, sonhos. Desejos.
Um poeta vagabundo, parafraseando Fernando Pessoa, diria que “a vida vale a pena quando se vive intensamente cada minuto”.
Ou, simplesmente, “quando se vive”. Vive, vive, vive e vive...


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(1)– Chico Buarque, Folhetim
(2)– Odair José, Garota de Programa
(3)– Odair José, Eu Vou Tirar Você Desse Lugar

____________

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A REGIÃO (ITABUNA) JUNHO/2001

HOJE O OUTRORA GLORIOSO BREGA DE SONIA É APENAS UMA LENDA...O CACAU, QUASE ISSO.

2 comentários:

Barreiras_Online disse...

SHOW DE BOLA...
Daniel, sou de Itabuna, mas atualmente moro em Barreiras e sempre estou visitando seu Blog e lendo... Muito massa esse texto...

Abraço

NETO HAUN

Confraria do Alto Beco do Fuxico disse...

Caro amigos Daniel,

Contada com o brilhantismo do autor, sobretudo para questões sociais, esta é a mais pura realidade da região cacaueira de antes.
A de hoje é outra, como os bregas e seus frequentadores. Se antes iam em busca de farras nos kasarões de todas as cidades, hoje encontram as meninas nas ruas, bares e até dentro das casas.
Não sei se isso é saudosismo ou visão da simples mudança dos tempos, tanto na vida social, econômica e cultural da nossa gente.
De tanto empobrecer, nosso povo muda o costume e se acostuma com os novos e bicudos tempos, sem o glamour (se é que existiu) das casas de mulheres contadas pelo patrício Jorge Amado em seus romances sobre o cacau.
Não sei o que é melhor, se o antes ou o hoje, só sei que acredito ser esse agora mais mais real, mais rude, às vezes mais sem graça, ou sem ludicidade, como chamam.
Às vezes costumo questionar: "Éramos felizes e não sabíamos ou virávamos as costas para a realidade?"
É uma pergunta que ainda não soube a resposta, mas continuo achando (não tendo ainda a certeza) que vivíamos melhor, apesar da pobreza tecnológica, porque menos embrutecidos.

Até qualquer hora,

Walmir Rosário